Laetitia Delamare

Laetitia

Com o aval do Luis Augusto de Lima, o dono da tia, deixo aqui documentado 
esse inacreditável, mágico e sempre útil que a sempre Eu-Gênio-C deixou 
como libelo da irrealidade quotidiana a que somos submetidos.

"DA VIGÊNCIA FATÍLOQUA NA OBRA DE SARTRE"

Quem quer que vagueie pelo labirinto cáustico das indúcias heggelianas, 
tropeçará,ab initio, com a dúvida cartesiana. Calcando a humosa sátira  dos
sofistas pletóricos, avoluma-se a dúbia corrente em que brota o hermenêutico
Kierkegaard, trazendo ao inconsciente lapso o corrente o inspuir de uma ilu-
sória tergiversação.

Nesse galgoteano fluir situa-se Sartre, não obstante libertar os pródromos 
canônicos de uma pragmática, por assim dizer, bi-dimensional, face ao desequi-
líbrio telúrico e mais do que tudo prévio da autoridade sistematológica.

Ora, se vinculamos a conivência cética, a pergunta se impõe:

                   QUO VADIS?

É óbvio que as brenhas periclitantes não logram anquilosar o teor semântico. Daí otema adutor da visão generalizada. Já Neisser, na sua estereoscopia profética, de-monstra o caótico acervo de paramentalidade de núcleo, 




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SINOPSE

A personagem é obsessiva.

Trava permanente batalha contra sua própria inadequação

Tem TOC

Tem no trabalho sua única conexão com o mundo

Insônia  – sonhos – pesadelos

Insônia – sai

Encontra uma vampira

Descontrola-se

Vê através de “buracos na fechadura” outros seres, que antes habitavam seus sonhos.

O TOC passa a confundir-se com aspectos sombrios da personagem

O monstro assume a personalidade

Entrega-se a uma série de bizarrices, assassinatos, sangue, o aspecto físico vai-se transformando.

Redenção:

Apaixona-se e imola-se para salvar a alma da Amada Imortal.

….

Mas.

O monstro sai do corpo sem vida e arrasta-se para um esconderijo onde fica a espreita, esperando a próxima vítima.

Sob a ficha técnica roda um filminho em looping.

Com o bicho entrando e saindo de novos corpos

Splashes de sangue

ZIENDE

Golfinhos em Açores, espécie endêmica

As condições climátcas associadas ao isolamento geográfico, ao relevo e às características geológicas das ilhas dos Açores, deram origem a uma grande variedade de biótopos, ecossistemas e paisagens que propiciam a existência de um elevado número de habitats que abrigam grande diversidade de espécies animais e vegetais.

A vegetação natural das ilhas açorianas compreende um vasto número de espécies originadas do Período Terceário, na sua maioria endêmicas e com estatuto de proteção. A Laurissilva, cuja origem está relacionada com as florestas úmidas do Terciário, é uma floresta com um índice de endemismos muito elevado.

Encontram-se em todas as ilhas açorianas cerca de 300 espécies endêmicas de artrópodes, distribuídas em habitats muito diversificados, tais como cavidades vulcânicas, campos de lava, florestas naturais, etc.

Em relação aos mamíferos, ocorrem nos Açores, de forma natural, 25 espécies, maioritariamente marinhas, 24 das quais correspondem a cetáceos (baleias e golfinhos) além de 460 espécies de peixes distribuídas por 142 famílias. Na região açoriana ocorrem ainda 5 das 7 espécies de tartarugas existentes no mundo entre as quais a mais abundante, a tartaruga careta (Caretta caretta) e duas outras que consistem numa espécie endémica terrestre, que são os únicos dois mamíferos autóctones do arquipélago: O Morcego-dos-Açores (Nyctalus azoreum) e o Priôlo (Pyrrhula murina)

Raquel 3

Ainda eram duas e meia da tarde e estava tudo quieto. Sesta para os adultos e farra para as crianças, na piscina ou no pomar, longe da casa. Muito tempo livre. Todos satisfeitos.

Raquel estava quase sem fôlego de tanta emoção, tinha uma casa toda só para si. Ela já tinha começado a pesquisar, mas as coisas não eram nada fáceis; para encontrar o que estava procurando, precisava de textos acadêmicos: o problema é que era difícil encontrar publicações confiáveis. Agora, finalmente, começava a compreender melhor a fisiologia dos golfinhos, coisas que faziam sentido, que vivenciara, mas que precisavam de elaboração. Sabia, por exemplo, que eles tinham duas formas de respirar, adaptaram-se para submergir até grandes profundidades. Descobrira que o golfinho-comum, em condições normais, costuma subir à superfície para respirar duas ou três vezes por minuto, mas que também pode ficar submerso por até vinte minutos.

Num artigo publicado em 1999, ”EQUILIBRANDO AS NECESSIDADES DE EXERCÍCIO PARA A MANUTENÇÃO DA ENERGIA” escrito por Albert W. Williams, Francis G. Hunt e J.A. Breuer, do departmento de Terra e Mar da faculdade de biologia da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, ficava provado que durante a submersão esses mamíferos marinhos tem que confiar em sua própria habilidade para utilizar as reservas limitadas de oxigênio que podem reter nos pulmões, sangue e músculos. É através de repetição e treinamento que aprendem a determinar o efeito tanto do esforço quanto da apnea no uso dessas reservas. Dependendo da capacidade de “prender a respiração” quando estão na superfície, para mergulhar até profundidades que podem variar de 60 até 210 metros. A fisiologia do golfinho-comum, golfinho-nariz-de-garrafa, golfinho-roaz ou roaz-corvineiro modifica os níveis de lactato em sua corrente sanguínea. Era assim que conseguiam ficar por tanto tempo embaixo d’água.

Portanto, os golfinhos tinham algo em comum com os humanos: ambos funcionam em dois níveis: possuindo memória instantânea e memória profunda. Saber que a apnéa profunda, nos golfinhos, pode durar até vinte minutos, que, multiplicados pelo tempo real da vida subaquática, multiplicados pela memória coletiva e mais uma vez multiplicados pela memória genética, produzia em Raquel um efeito perturbador e ainda nem ficara sabendo que eles podiam se lembrar da era das grandes navegações, pois acompanhavam as caravelas.

QUAL É A DO ADELINO?

Final de setembro esplendoroso.

Chovera e com isso a secura do ar e aquela poluição desgraçada eram coisa do passado. Agora estava fresco, um alvorecer de céu de brigadeiro. O verde das folhas das castanheiras contrastava com o azul do céu enquanto a azáfama dos passarinhos transmitia uma sensação de recomeço.

Adelino, entretanto, não tinha tempo para ver nada disso. Já estava acordado há duas horas e puxava ferro. O tempo era curto e não permitia divagações, depois da sessão com aparelhos ainda correria oito quilômetros.

Sua namorada fora dispensada sumariamente, sem maiores explicações.

O trabalho era extremamente burocrático, exigia atenção total e pagava razoavelmente bem: era o que havia e ele pouco se importava. Tratava-se apenas de horas contadas esperando o segundo turno: capoeira a noite, para dar flexibilidade, três vezes por semana, e natação nas noites alternadas, incluisive sábado.

Era nos fins de semana que Adelino podia dedicar-se a mais dois aspectos que precisavam ser aprimorados: o visual e a personalidade.

Os amigos comentavam entre sí e até tentaram levantar o assunto com o próprio Adelino. Mas aquilo era um muro; não tinha conversa nem explicação. Uns diziam que ele tinha entrado na onda do metrossexualismo, outros não iam muito nessa onda e achavam que o problema alí era outro. Mas como agora eles pouco se encontravam, o assunto acabou perdendo espaço nas conversas, substituído pelo futebol, as mulheres e a política. A ordem de importância podia variar para cada um dos antigos companheiros de Adelino, mas ao final e a termo, era sempre a mesma coisa.

A cada fim de semana Adelino buscava um novo visual, e com cada novo visual, uma característica de sua personalidade era destacada. Adelino instalara vários espelhos e sempre que possível falava. Repetia frases olhando-se no espelho e avaliava o gráu de veracidade incutido naquela frase. Tinha, inclusive, contratado uma dublê de personal styler com professora de teatro.

Qualquer outra pessoa estaria exausta com aquele rítmo de trabalho, mas não Adelino. Aquilo tudo era um ritual de passagem e ele cumpria-o tão bem quanto qualquer índio que tenha que ter suas mãos atadas a luvas de formigas furiosas e continuar repetindo o mesmo processo por um número x de dias. Não era problema: era solução.

Em casa, Adelino procurava manter-se sempre de calção, para poder apreciar nos espelhos o resultado de seus esforços.

Como tinha traçado um plano sem falhas, os penteados que exigiam cabelo comprido tomaram os seus seis primeiros fins de semana. Adelino se esforçava, foi do moicano ao bem sucedido, passando pelo grunge, pelos mullets e pelo despojado, além do punk, dark, gótico e afins. Era tudo fotografado e analisado, ainda tinha três semanas antes da máquina zero que daria lugar ao rapeiro bling-bling com cara de gringo.

Devido às normas do seu projeto perfeito, Adelino tinha que desfilar esses novos Adelinos, que iam aparecendo a cada semana, pelo escritório. Não fossem sua dedicação e produtividade, teria sido mandado embora, mas não se pode mandar um empregado embora só porque ele está testando novas personalidades e novos visuais, certo? Fazer o quê? Além disso, neste processo, Adelino também passara a ser mais cortêz com seus colegas de trabalho. Evitava qualquer tipo de conflito e parecia até que andava lendo a Bíblia; o que não queria dizer nada, porque, sem mais aquela, apareciam também livros de Cabala, Umbanda, auto-ajuda…

Adelino, com sua praxis habitual, tinha-se transformado, sem qualquer interferência sua, ou, pelo menos, de que pudesse se lembrar, num enigma.

Depilava-se. Chegou a fazer a sobrancelha, o quê, por sorte, não teve serventia para qualquer de suas personalidades e ele logo voltou ao normal. Esta tinha sido uma das decisões fáceis. Eram tantas x,y,z variáveis, que se ver livre de uma, sem maiores problemas, já era um alívio.

O trabalho com halteres, corridas, natação e todo o resto estava fazendo efeito; as camisas já estavam apertadas, esmirradas mesmo. O dinheiro também encurtava e tinha de ser todo reinvestido.

Adelino tinha um objetivo e um projeto perfeito, o quê podia dar errado?

UM VELÓRIO

Final de setembro esplendoroso. Chovera, e com isso, a secura do ar e aquela poluição desgraçada eram coisa do passado. Agora estava fresco, um alvorecer paradisíaco de céu azul de brigadeiro. O verde das folhas das castanheiras contrastava com o azul e a azáfama dos passarinhos transmitiam uma sensação de paz absoluta.

— Ts, uma pena mesmo, ele ser assim tão.. metódico… Legal… Super legal!
— Metódico?
— Metódico…
— Metódico! Ôu! Metódico? Tás brincando? Minha irmã é metódica, meu pai é metódico. O Padre Pedro é metódico.
— Hhmmmm.
— Você dizer isso é quase um insulto ao “Metodismo”, tststs.
— Uai?!
— O nosso amigo tá ficando doido. Você ainda não percebeu? Ele, simplesmente, surtou!!! Tudo bem, a gente é amigo, mas você, por exemplo; chamaria ele pra…sei lá: — ir pescar? — Entendeu? Já pensou? Aposto que você nunca pensou.
— Nem pensar, né? Entendí.
— Tudo bem.
— Não, eu só tava querendo dar uma de legal… Afinal a gente é amigo há… o quê? Doze anos?
— Por aí.
— Pois é. A gente sempre foi amigo. Não me lembro de mim sem ser amigo dele. É, antes de eu ser amigo dele eu era criança.
— É isso.
— Pois é.
— É como eu te disse; metódico, é bondade sua.

Eram dois ex-colegas de trabalho de Adelino.

Amanhecia e eles tinham saído juntos do velório de um amigo comum. Tinham ido jantar e depois de tomar umas e outras começaram a relembrar os amigos, a vida; aquela releitura básica que sempre se torna necessária quando se perde um amigo. E os outros? Perdidos na vida, reaparecem. O próprio setting de um consultório de analista. Cada um com seus sonhos, suas vergonhas.

O que ninguém sabia é que Adelino era um homem decidido.

DECISÕES AOS TRAMBOLHÕES

Adelino sentia-se como se não tivesse mais direito às camisas brancas passadas que sua mãe fazia questão de deixar no cabide pendurado na chave do guarda-roupa.

Estava formado. Tinha muita experiência, tinha trabalhado três anos como estagiário em grandes companhias além dos dois que passara já contratado pela firma em que estagiava quando se formara. Foi lá que teve a oportunidade de catalogar uma coleção de peças arqueológicas e criar um banco de dados que permitia fazer inúmeros cruzamentos: estilos, datas, crenças e origens. Foi esse trabalho que serviu de base para sua monografia: publicada.

Mas com o outsourcing – terceirização, os empregos que apareciam na sua área já precisavam estar acoplados a uma formação como projetista. Projetista, não designer, porque o designer de hoje também já tem que ter formação como projetista. Chama-se projetista porque programador de computação é um termo que ficou, sem mais aquela, fora de moda. Mas, cá pra nós, complica. Como é que ele agora iria poder começar um outro curso para complementar o que já fizera. E que acreditara ser o suficiente para alcançar um emprego que pagasse um salário decente.

Mas não, o aumento não veio, nem qualquer oferta; o trabalho estava completo e Adelino tinha que encarar a dura realidade: era hora de arregaçar as mangas e pegar o emprego de técnico em informática que aparecera. É claro que lá, eles também tirariam proveito da sua formação universitária, do seu vasto embasamento teórico e da sua reconhecida produtividade, só não teriam que pagar mais por isso…

— É um “catch-22”, um beco sem saída. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come – cismava.

Tratou de alugar um pequeno apartamento junto ao serviço e assumiu suas novas funções com orgulho. Encontraria uma saída.

Retomou o hábito da leitura, ainda tinha a carteirinha da biblioteca da faculdade. Depois de tantos anos de leituras obrigatórias, agora queria ler todos aqueles livros que tinha tido vontade de ler, mas não teve tempo.

Tinha adquirido o respeito pelas palavras através de seus pais, mas principalmente por causa da mãe, que era professora, formada em filosofia com mestrado em línguas mortas. Os dicionários tinham passado a ser seu cacoete. Dedicado à ficção, não largava seus dois volumes do “The Golden Bough” de James George Frazer, jamais traduzido para o português. “O ramo de ouro”, segundo a Wikipedia, é uma das obras fundamentais da antropologia, onde Frazer reúne uma enorme diversidade de mitoslendas e relatos de magia e religião, dos mais diferentes povos do mundo, debatendo a questão principal do “deus imolado”. Seu estilo literário e a erudição da obra levaram The Golden Bough a influenciar mitólogos, antropólogos, filósofos e escritores, como FreudWittgenstein e James Joyce. Pois Adelino então começou a relacionar as personagens com os deuses, assim como fizera em sua tese: “Festival: berço de todas as artes”.

Encontrar as iconografias que cruzavam o sagrado ao profano sempre tinha sido o foco dos seus interesses, agora comprovava muitas de suas idéias, por um novo prisma. Descobriu a função transgressora do teatro na construção do profano a partir do sagrado. Começou a estudar os atores e suas atuações. Imaginava-se um Alain Delon/Burt Lancaster, um Steve McQueen/Jean-Paul Belmondo, ou até mesmo como um Marcello Mastroianni/Federico Fellini. Sua formação como antropólogo levava-o, cada vez mais, a interessar-se pelo ser humano e seus relacionamentos. Lia Shakespeare em voz alta.

Como não tinha mais a mordomia da casa dos pais, assistia, muito raramente, aos canais da TV aberta. Um dia sua namorada convenceu-o a assistir a um reality show. Ela dava um curso sobre Análise do Discurso e adorava o Big Brother. Aquela história toda era completamente contra seus princípios, mas Paula tanto insistiu que ele resolveu prestar atenção nos comentários que ela fazia, entusiasmada. Teve que concordar com ela: aquilo tudo era digno de análise.

Passou a assistir com regularidade, tomava notas, comparava, detalhava, traçava perfis. Releu “Meu último suspiro” de Luis Buñuel. Conseguiu, emprestadas com um amigo de um amigo, cópias de filmes antigos, em preto e branco, onde tudo era preto no branco mesmo e os heróis e heroínas eram muito bem definidos. Buñuel se gabava por ser capaz de descobrir o enredo de um filme qualquer, a partir do nome do protagonista e do diretor, assim como descobrir o nome dos atores só a partir do enredo. Adelino assistia ao Big Brother e se propunha as mesmas questões. Diante dos paredões, usava os truques do mais profano dos profanos. Acertava todos.

Então tomou uma decisão. Tomou várias decisões. Decisões aos trambolhões.

Terminou com a namorada, o que foi horrível, mas estava fazendo aquilo tanto por ele quanto por ela. Paula merecia muito mais do que ele, àquela altura, podia oferecer.

Se pretendia ser bem sucedido em sua empreitada, não podia perder um só segundo, nem gastar um só centavo que não fosse absolutamente necessário. Teria que investir tudo o que tinha. Corpo e alma.

Ao fim de seis meses estava pronto. Faria o vídeo.

BIZARRICES, O PONTO DE VISTA DE PAULA

Quando crianças, vivemos todos cercados por contos e canções que nos enredam em labirintos de imaginação, quadrangulando entre lendas urbanas e rurais. Adultos se deliciam ao aterrorizar-nos com histórias recorrentes. Apossam-se das imagens que povoam nossas mentes e assim continuamos aprendendo, repetindo, brincando e cantando as bizarrices que nos atormentam em noites de gritos inexplicáveis e cachorros que uivam uns para os outros.

E assim morreu Angélica, mocinha esquálida, por causa do farmacêutico, mocinho estúpido, que deu-lhe, sem rótulo, ácido sulfúrico e ácido prússico. E eram dez horas e todos dormiam e à meia-noite o gigante com a faca na mão passava manteiga no pão.

Às dez horas, todos dormiam, é que não tinha televisão e muito menos BBB, mas ele estava acordado, sentado na porta, quando viu passar linda moreninha vestida de branco e mui bem calçadinha. Ele pegou sua capa, correu atrás dela, dizendo gracinhas e chamando por ela. Que respondeu:

— Senhor, o que quer?

— Não sou casado e não tenho mulher. Não sou casado e não tenho mulher, serei seu esposo se você quiser.

Ao quê ela responde:

— Eu bem lhe dizia, eu bem lhe avisava, mas tu eras burro e não me escutava.

E exatamente como Roland Barthes explicaria em seu “Fragmentos de um discurso amoroso” ele vê a verruga no nariz dela, instantaneamente. Se desapaixona e responde:

— Olhei para os braços eram de marfim, que lindos braços, mas não para mim. Olhei para as pernas eram de pavão, que boas cordas pro meu violão. Olhei pro pescoço, não era pescoço, era pelanca grudada no osso. Olhei pra cabeça, não tinha cabelo, era uma laje coberta de pelo. Olhei pros ouvidos, não tinha as “oreia”, ora meu Deus, mas que coisa mais feia. Olhei para a boca, não tinha um só dente – era o diabo em figura de gente.

Para completar, era meia-noite, o sol raiava no horizonte, e nessa meia-noite, uma mulher, sentada em pé, num banco de pau feito de pedra, calada, assim dizia:

— O mundo é uma esfera quadrada que gira parada em torno do sol. O mundo há de se acabar, em chamas de água fria. —

Tinha também Pedro Malazartes, que com uma bala matou sete, bebeu água que não era santa, além de ter atirado no que viu e acertado no que não viu.

Ah esses adultos, apelaM para tudo que causa espanto e encantamento. Não são os contos infantís que criam os demônios, eles apenas ensinam às crianças que é possível matá-los.

Era nisso que Paula estava pensando. Nisso e em suas férias. Malfadadas férias, que tinha tirado porque estava totalmente estressada, em frangalhos, com os nervos em pandarecos. Ela tentava inserir suas lembranças de criança nas memórias mais recentes, mas não tinha como evitar o que, de fato, vivera. Ainda trazia na bolsa o documento, para atormentá-la dia e noite.

Mas que peça a vida lhe pregara: —  Ainda por cima isso!

Tantos lugares ela podia ter escolhido para ir… Mas tinha que ter voltado àquele lugar onde, uma vez, tinha mergulhado e seguido os peixinhos coloridos.

— Em vez de andar pra frente! – Resolveu voltar atrás e, por isso, vivia atormentada, incapaz de dividir com outro ser humano a experiência por que passara.

O documento. O dente escondido no buraco atrás do armário. Hieróglifos no banheiro. Para ela não havia nem patuá nem figa. Ele estava em sua bolsa e ela sentia vertigens só de pensar em tentar relê-lo. Queria acreditar que era tudo ilusão e não verificar que desta vez estava ficando doida de vez. Doida de Pedra. Medo era começar a ler e ver as letras enrodilhando-se. Medo era vê-las escorrer. E então ela nunca mais poderia ler a história da sua vida escrita por outra mão num diário perdido num fundo de gaveta de um quarto de pensão alugado. — Sabe Deus!

Outra letra, outro nome, outra pessoa. Os medos eram seus. Os infortúnios, o destino, as pedras e perdas. A rematada desordem. Tudo se encaixava e se desmanchava.

Paula desenvolveu uma fobia toda especial engendrada em tudo que se abre. Não abria armários, gavetas ou caixas. Não eram confiáveis. Até mesmo os livros não mereciam confiança. Às vezes, pedia à sua irmã que lesse para ela. O cerebrowser atormentado não lhe deixava abrir um livro. Mesmo quando sua irmã lia para ela, gostava que lesse livros que ela já tivesse lido, pois, só assim, podia confiar e discernir se o tal livro estava mesmo contando a mesma história. Se não era um simulacro, um engodo.

Que desastre ver uma mente esfacelar-se assim.

A mão que escrevera aquelas páginas,  diário sem método que ora habitava seu bolso, também tirara a própria vida.

A de Paula também já não prestava para nada.

Foi nesse estado de espírito que Paula ligou a televisão. Apesar de tudo que acontecera, ela ainda gostava do Big Brother. Qual não foi sua surpresa ao ver seu amado Adelino lá, no Big Brother. Vórtex de vertigem. Mas no dia seguinte já era outra pessoa, comprou o pay-per-view e não desgrudava mais da televisão. Tudo o que ele dizia era pra ela, e só pra ela, usando códigos que só os dois conheciam: eram filmes, personagens, livros. Ela conhecia as habilidades de Adelino, sabia do que era capaz.

Esqueceu o diário, depois pegou pra ler, descobriu que o que lhe parecera líquido e certo era fruto do desespero, era seu coração partido.

No dia em que Adelino saiu de lá com seus dois carros, sua moto, um corpão de dar inveja e mais um milhão e meio de reais na mão, ela estava lá fora para recebê-lo.

inadequação

A toalete escolhida era inadequada e o cerebrowser dela sabia.

A sensação de inadequação era-lhe tão habitual que só assim sentia-se adequada.

Quinze vezes certificou-se de que o passaporte, cartão de crédito internacional e passagens já estavam na valise totalmente inadequada que escolhera para a viagem.

No mesmo instante em que decidira viajar, a idéia de viajar leve também se instalara. A mala, igualmente inadequada, estava pronta. E, pela internet, também averiguara as possibilidades de alugar bicicleta. Era uma aventura e ela sabia perfeitamente o quão inadequado isto era para sua idade.

Mas a sistemática da inadequação já se tornara uma obsessão, um teste: — Quão inadequada se pode ser? — Ou uma equação, a ser provada pela negação. O objetivo era levar a inadequação ao seu estágio máximo. Uma esperança: — Se fizesse tudo errado, daria tudo certo.

Só o essencial. E no essencial, correção absoluta.

Não levava nem livros nem material de costura. Nada de pincéis e tintas. Só materiais inadequados seriam aceitos e utilizados.

Negar-se-ia todos os prazeres banais. Faria tudo diferente. Seria inadequada até para sí mesma. Foi o que decidiu quando chegou à conclusão que só pela negação poderia encontrar a rota correta. Um caminho que se bastasse.

Para completar omitiu seu prazer mais antigo: — Nada de adrenalina. Chegou ao aeroporto com quatro horas de antecedência. Mas no fundo ainda se perguntava: — Quantas vezes é possível recomeçar? — Mas os pensamentos negativos recorrentes também estavam proibidos, assim como o remédio para dormir. Então não dormiria. E daí?

Nada de notebook, a máquina fotográfica seria o único apetrecho tecnológico permitido. Em último caso poderia perdê-la. o experimento permitia atalhos e retornos.

No paroxismo da inadequação, iria para a Islândia por Porto Alegre, Rio Grande do Sul, estado pelo qual não tinha a menor simpatia nem qualquer conhecido. Jamais pensara em conhecer o Rio Grande do Sul. Perfeito. Totalmente inadequado.

Raquel.1

Então estávamos todos lá. Todas as providências haviam sido tomadas. Era exatamente nesse início de raciocínio que Raquel estava quando olhou através da janela e viu sua própria imagem refletida sobre uma paisagem perfeitamente agradável. Era um bom presságio. Sua imagem finalmente encontrara um cenário perfeito.  Havia quartos e camas para todos, isso para dizer o mínimo. Raquel jamais se sentiria segura se os desejos de todos os seus não pudessem ser atendidos. Apesar de saber da questão dos golfinhos e de tudo o que sua relação com eles acarretava: só com muito planejamento, força de vontade e concentração, ela tinha, sem que ninguém mais soubesse, construído o cenário perfeito para suas pesquisas, conseguira o tempo de que necessitava para desenvolvê-las.

Raquel sabia que tudo começava pela respiração.  Isso, pelo menos, ela já tinha aprendido. Memória e respiração; as profundezas, a telepatia e toda a história da humanidade acumulada.

Há muitos anos, ela acreditara que o amor, para ser perfeito, tinha que encontrar seu próprio ritmo.  Para ela, naquela altura, conseguir sincronizar o ritmo da sua respiração ao do outro tinha uma importância física, matemática, fisiológica. Pois só assim ambos estariam sincronizados com o universo, num mesmo ritmo. A rítmica e a ciência do ritmo objetivavam desenvolver e harmonizar as funções motoras, regrando os movimentos corporais no tempo e no espaço, aprimorando o ritmo. Tendo em conta esses conceitos; seu desenvolvimento e aperfeiçoamento tornavam-se vitais, pois os seres dependem do ritmo para cumprir todas as atividades que realizam. Todas. Ritmo, respiração e espaço entrelaçados. À sua teoria faltara só a inclusão da memória.

Seu inadvertido relacionamento com os golfinhos provara, agora, tantos anos passados, que aquela teoria estava correta. Só faltava reunir as provas e o tempo para a dedicada leitura de tantas pesquisas esparsas e independentes. Os conhecimentos que lhe haviam sido repassados, seriam capazes de preencher todas as lacunas, propiciando uma renovação radical no acervo humanitário das perguntas.

A curiosidade ganhara novos aliados.

Raquel.2

Quando Cecília acordou, olhou em torno e não reconheceu nada. Então lembrou-se do sonho que vivera naquela noite. Mesmo que o quarto em que acordara parecesse exatamente igual àquele em que fora dormir, nada mais poderia ser como antes. E, exatamente, tinha sido apenas um sonho.

Cecília examinou, com fervor, cada canto do quarto que sabia ser seu… Perscrutou por um detalhe qualquer, um indício que pudesse religar “agora” à sua vida.

Por enquanto, ela buscava articular palavras. Uma sequência qualquer. Palavras que ela pudesse mimificar como suas, para oferecê-las a sua mãe, que, preocupada, abria a porta e caminhava em sua direção.

O pior é que, especificamente por causa disso, por essa desordem no cotidiano, seus esforços para encontrar uma palavra, uma única palavra, que, momentaneamente, pudesse significar “está tudo bem”, pareciam inúteis. Os instantes que decorreram entre o momento em que Cecília acordara e a passagem da mãe através da porta do quarto, já distorciam qualquer possibilidade de normal.

Sua mãe não era assim. Ela não era assim.

Cecília olhou pela janela e suas plantas olhavam para ela e estavam perfeitamente normais. Naquele momento específico de perplexidade, suas suculentas representavam sua única ligação com a realidade; seu fio terra.

Cecília prestou muita atenção na entidade física da rosa-de-pedra. Em cada folha. — Folha? — A natureza estava alí representada. Alguma coisa em que se podia crer.

Mas a porta estava aberta e sua mãe, que já devia ter passado pelo corredor, batendo os saltos dos sapatos discretos e sofisticados, estava alí, olhando para ela, como se ela fosse sua filha. Perguntava se estava tudo bem e Cecília tinha que responder.

Sem saber o que pensar e derrotada por esse — Está tudo bem? — que sua mãe emitira, Cecília desiste e resolve fazer uma lista. Mas não se engane caro leitor, como já havia dito, Cecília acordara de um sonho estranho e, diante de seus olhos, a multiplicidade de opções de listas a fez sentir-se como  uma Alice no País do Espelho em que seu cerebrowser buscava a ficha certa. Nesse ponto lembra-se que ainda está devendo uma resposta à sua “mãe”.

— Ai, mãe, normal! — OK, os momentos que passara com as suculentas tinham sido suficientes para produzir uma frase aceitável. Sua mãe estava liberada, o problema agora era só dela.

Como lidar com o sonho? Aquele sonho. O Sonho, O Corvo, O Aleph. Realidades inelutáveis, autoevidentes. Cecília não tinha ilusões, seu “O Sonho” tinha as mesmas conotações que um “O Corvo” ou, pior ainda, um “O Aleph”.

Por um instante, Cecília pode lembrar-se da vida que vivera num mosteiro medieval, onde exercera o papel de iluminador e que, agora, nesse exato momento, podia compreender o que não compreendera no século XII, quando só lhe era permitido ilustrar uma, duas, ou, no máximo três páginas dos mais preciosos livros produzidos pela humanidade.

Ainda assim, Cecília procurava dominar-se, porque uma coisa é você fingir para a sua mãe, outra coisa é fingir para sua filha de quatro anos de idade. “O Sonho” retumbava em suas veias e ela tentava ouvir, mais uma vez, tudo o que tinha lido e visto. Cecília, com a fé dos amantes do cinema, clamava por uma deixa. Uma máscara. Um gesto. Qualquer coisa invulgar que pudesse emprestar um pouco de humanidade à frase que teria que dizer à Clara, sua filha.

Mas ela queria ser Cervantes e não Machado — com todo o respeito. O que ela pretendia articular não dizia respeito ao segredo dos outros, mas ao segredo dela, que só podia ser traduzido através do imaginário de Cervantes. O manuscrito: Cecília precisava de um texto. Tinha que se lembrar de alguma coisa que fizesse sentido. Alguma coisa que estivesse gravada em sua memória e que ela pudesse recitar, como se fosse sua, como se ela fosse o personagem que fora até a noite anterior.

— Dor de cabeça. — Clara! — Clara, mamãe está morrendo de dor de cabeça, por favor, vai buscar um copo d’água pra mamãe, vai. —

Tinha ganho alguns minutos.

Colocou os óculos, empertigou-se, sacudiu a cabeça e parou, esperando o quê iria acontecer em seguida.

Esperou.

Tomou o copo d’água e disse que tinha acordado passando mal, que a cabeça estava rodando e que não podia suportar a luz.

Clara era esperta e não precisava dela para levar a vida, fazer seus deveres, cumprir seus afazeres, ou não, mas, pelo menos, não precisava dela, o que era ótimo, porque “ela” não estava alí. Podia-se dizer que tratava-se de uma carcaça que retivera a memória.

Precisava de um caderno, mas como tomar notas se acabara de dizer que estava com dor de cabeça, que não suportava a luz? Teria que fazer uso de toda sua concentração para criar uma imagem mental, um arcabouço de tudo o que vivera n”O Sonho”.

Porque de uma coisa Cecília tinha certeza: a vida jamais voltaria a ser a mesma.

Ela tentou lembrar-se de algum filme que tivesse aquele enredo, de um livro que lhe tivesse causado uma grande impressão. Na sua vida pessoal, não precisava nem procurar. Cecília nunca fora dada a imaginar como seria o futuro; gostava de entender o passado, de fotos 3×4, de documentos, de revistas e jornais, de passaportes. Acima de tudo amava os livros. Sua vida pessoal não passava nem perto do que vivera naquela noite incomum.

Estava num mato sem cachorro.

— Jóia! — Joiááááá!!! — Vem! Vem fazer companhia, vem!

Cecília não chamara Jóia por acaso. É que, possivelmente, a única coisa de que se lembrava, na sua vida toda, que tivesse sido ligeiramente fora do comum, era sua capacidade de se comunicar com os cachorros. Nada transcendental, nem misterioso, apenas uma amizade pura, afetividade livre: os olhos, a disposição para qualquer brincadeira, aquela capacidade de ficar quieto, do lado, quando se quer apenas ler um livro. E os olhos, presentes, nas horas do aperto, em que se quer conversar, mas as palavras são poucas, inúteis. A afetividade não tem tradução, a única linguagem que conhece é a linguagem corporal, e dessa, os cachorros sabiam tudo.

E se Cecília alguma vez precisara de Jóia, a hora era essa. Jóia seria seu interlocutor, seu espelho, seu caderno de notas. Ninguém desconfiaria de nada. Como sempre fizera questão de frisar, ela era uma pessoa com cachorro, uma pessoa que sempre tem cachorro. Todo mundo sabia disso. Um comportamento corriqueiro.

Cecília agarrava-se a isso. Manter-se no controle e tentar encontrar sentido no que presenciara. Presenciara??? Naquela noite ela fora um ser aquático marítimo e respirara. Sustivera a respiração até o fundo do mar.

— Jóia! Como é que eu respirava?

— Então? E eu respirava como um golfinho?

Cecília agora teria que levar, para o resto da vida, o seu ser golfinho, porque por essa fresta onírica, ela fora de outra espécie. Agora ela sabia que todas as informações humanas tinham sido coletadas por instrumentos. Ninguém, antes dela, podia falar de primeira mão: ninguém fora um golfinho.

Cecília fora um golfinho. Pertencera ao bando. No tempo dos sonhos que viajam na velocidade da luz e duram uma existência; brincara, conhecera todas as correntes marítimas, amara e perdera o companheiro e, agora, teria que introduzir sua vida marinha e suas memórias de golfinho no seu dia-a-dia. Os golfinhos tem memórias coletivas. Darwinianas. Tinha consciência que a memória está na respiração, que o tempo no fundo do mar tinha uma dimensão orbital.

Qual é a do Adelino?.2

Final de setembro esplendoroso. Chovera, e com isso, a secura do ar e aquela poluição desgraçada eram coisa do passado. Agora estava fresco, um alvorecer paradisíaco de céu azul de brigadeiro. O verde das folhas das castanheiras contrastava com o azul e a azáfama dos passarinhos transmitiam uma sensação de paz absoluta.

— Ts, uma pena mesmo, ele ser assim tão.. metódico… Legal… Super legal!
— Metódico?
— Metódico…
— Metódico! Ôu! Metódico? Tás brincando? Minha irmã é metódica, meu pai é metódico. O Padre Pedro é metódico.
— Hhmmmm.
— Você dizer isso é quase um insulto ao “Metodismo”, tststs.
— Uai?!
— O nosso amigo tá ficando doido. Você ainda não percebeu? Ele, simplesmente, surtou!!! Tudo bem, a gente é amigo, mas você, por exemplo; chamaria ele pra…sei lá: — ir pescar? — Entendeu? Já pensou? Aposto que você nunca pensou.
— Nem pensar, né? Entendí.
— Tudo bem.
— Não, eu só tava querendo dar uma de legal… Afinal a gente é amigo há… o quê? Vinte anos?
— Por aí.
— Pois é. A gente sempre foi amigo. Não me lembro de mim sem ser amigo dele. É, antes de eu ser amigo dele eu era criança.
— É isso.
— Pois é.
— É como eu te disse; metódico, é bondade sua.

Eram dois ex-colegas de Adelino.

Amanhecia e eles tinham saído juntos do velório de um amigo comum. Tinham ido jantar e, depois de tomar umas e outras, começaram a relembrar os amigos, a vida; aquela releitura básica que sempre se torna necessária quando se perde um amigo. E os outros? Perdidos na vida, reaparecem. O próprio setting de um atelier de análise. Cada um com seus sonhos, suas vergonhas. Ninguém sabia que Adelino era um homem decidido.

Qual é a do Adelino?.1

Final de setembro esplendoroso. Chovera, e com isso, a secura do ar e aquela poluição desgraçada eram coisa do passado. Agora estava fresco, um alvorecer paradisíaco de céu azul de brigadeiro. O verde das folhas das castanheiras contrastava com o azul e a azáfama dos passarinhos transmitiam uma sensação de paz absoluta.

Adelino, entretanto, não tinha tempo para ver nada disso. Já estava acordado há duas horas e puxava ferro. O tempo era curto e não permitia divagações, depois da sessão com aparelhos ainda correria oito quilômetros.

A namorada fora dispensada sumariamente, sem maiores explicações.

O trabalho era extremamente burocrático, exigia atenção total e pagava razoavelmente bem: era o que havia e ele pouco se importava. Tratava-se apenas de horas contadas esperando o segundo turno: capoeira, para dar flexibilidade, três vezes por semana, a noite, e natação em noites alternadas, incluindo sábado. Era nos fins de semana que Adelino podia dedicar-se a mais dois aspectos que precisavam ser aprimorados: o visual e a personalidade.

Os amigos comentavam entre sí e até tentaram levantar o assunto com o próprio Adelino. Mas aquilo era um muro; não tinha conversa nem explicação. Uns diziam que ele tinha entrado na onda do metrossexualismo, outros não iam muito nessa onda e achavam que o problema alí era outro. Mas como agora eles pouco se encontravam, o assunto acabou perdendo espaço nas conversas, substituído pelo futebol, as mulheres e a política. A ordem de importância podia variar para cada um dos antigos companheiros de Adelino, mas ao final e a termo, era sempre a mesma coisa.

A cada fim de semana Adelino buscava um novo visual, e com cada novo visual, uma característica de sua personalidade era destacada. Adelino instalara vários espelhos e sempre que possível falava. Repetia frases olhando-se no espelho e avaliava o gráu de veracidade incutido naquela frase. Tinha, inclusive, contratado uma dublê de personal styler com professora de teatro.

Qualquer outra pessoa estaria exausta com aquele rítmo de trabalho, mas não Adelino. Aquilo tudo era um ritual de passagem e ele cumpria-o tão bem quanto qualquer índio que tenha que ter as suas mãos atadas a luvas de formigas furiosas e continuar repetindo o mesmo processo por um número x de dias. Não era problema: era solução.

Em casa, Adelino procurava manter-se sempre de calção, para poder apreciar nos espelhos o resultado de seus esforços.

Como tinha traçado um plano sem falhas, os penteados que exigiam cabelo curto tomaram os seus seis primeiros fins de semana. Ele se esforçava, foi do moicano ao bem sucedido, passando pelo grunge, pelos mullets e pelo despojado, além do punk, dark, gótico e afins. Era tudo fotografado e analisado, ainda tinha três semanas antes da máquina zero que daria lugar ao rapeiro bling-bling com cara de gringo.

Devido às normas do seu projeto perfeito, Adelino tinha que desfilar esses novos Adelinos, que iam aparecendo a cada semana, pelo escritório. Não fossem sua dedicação e produtividade, teria sido mandado embora, mas não se pode mandar um empregado embora só porque ele está testando novas personalidades e novos visuais, certo? Fazer o quê? Além disso, neste processo, Adelino também passara a ser mais cortêz com seus colegas de trabalho. Evitava qualquer tipo de conflito e parecia até que andava lendo a Bíblia; o que não queria dizer nada, porque, sem mais aquela, apareciam também livros de Cabala, Umbanda, auto-ajuda…

Adelino, com sua praxis habitual, tinha-se transformado, sem qualquer interferência sua, ou, pelo menos, de que pudesse se lembrar, num enigma.

Depilava-se. Chegou a fazer a sobrancelha, o quê, por sorte, não teve serventia a qualquer de seus personagens e logo voltou ao normal. Esta tinha sido uma das decisões fáceis. Eram tantas x,y,z variáveis, que se ver livre de uma, sem maiores problemas, já era um alívio.

O trabalho com halteres, corridas, natação e todo o resto estava fazendo efeito; as camisas já estavam apertadas, esmirradas mesmo. O dinheiro encurtava e tinha que ser todo reinvestido.

Adelino tinha um objetivo e um projeto perfeito, o quê podia dar errado?

Está aí uma boa pergunta. O quê podia dar errado?